UM DECRETO IMORAL,NATURALMENTE!

A Lei n. 8.036, de 11 de maio de 1990, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, estabelece em seu art. 20, inc. XIV que a conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada em caso de necessidade pessoal, cuja urgência e gravidade decorra de desastre natural, conforme disposto em regulamento, desde que o trabalhador seja residente em áreas comprovadamente atingidas de Município ou do Distrito Federal em situação de emergência ou em estado de calamidade pública, formalmente reconhecidos pelo Governo Federal. O dispositivo foi introduzido em nosso ordenamento legal pela Lei n. 10.878, de 8 de junho de 2004.

O Dicionário Houaiss apresenta quinze acepções do adjetivo “natural”. Merecem destaque as quatro primeiras, que são as que dizem respeito mais de perto à questão ecológica: (1) Que pertence ou se refere à natureza (ex: riquezas naturais, paisagem natural); (2) Regido pelas leis da natureza; provocado pela natureza (fenômenos naturais, catástrofes naturais); (3) Em que não ocorre trabalho nem intervenção humana (fronteiras naturais, açude natural); e (4) Que decorre normalmente da ordem regular das coisas.

Richard A. Posner, em sua obra “Catastrophe: Risk and Response”, subdivide as catástrofes em naturais e aquelas geradas pelo homem (man-made catastrophes) – e estas, em três subgrupos: acidentes científicos, outras catástrofes não intencionais geradas pelo homem e catástrofes intencionais. São catástrofes naturais as pandemias, as quedas de asteróides (aliás, a origem etimológica da palavra desastre é a mesma de astro), as erupções vulcânicas, os terremotos etc.

O inciso XVI do art. 20 da Lei 8.036/90 foi regulamentado pelo Decreto n. 5.113, de 22 de junho de 2004 que, em seu art. 2º considera desastre natural: I – vendavais ou tempestades; II – vendavais muito intensos ou ciclones extratropicais; III – vendavais extremamente intensos, furacões, tufões ou ciclones tropicais; IV – tornados e trombas d’água; V – precipitações de granizos; VI – enchentes ou inundações graduais; VII – enxurradas ou inundações bruscas; VIII – alagamentos; e IX – inundações litorâneas provocadas pela brusca invasão do mar.

Todas as hipóteses previstas no referido Decreto de 2004 são, inequivocamente, desastres naturais, isto é, são desastres provocados pela natureza, não ocorreram por trabalho ou intervenção humana.

Espantosamente, no dia 13 de novembro de 2015 foi publicado o Decreto n. 8.572, de 13 de novembro de 2015, que altera o mencionado Decreto n. 5.113/2004, introduzindo um parágrafo único ao seu art. 2º com o seguinte teor:

“Para fins do disposto no inciso XVI do caput do art. 20 da Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais.”

Como assim? O rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração está sendo chamado de “desastre natural”, à semelhança de um vendaval, uma queda de asteroide ou um terremoto?

Exatamente isso: o primeiro gesto da Sra. Presidenta da República, em face da catástrofe no distrito de Bento Rodrigues causada exclusivamente pela empresa Samarco, foi de declará-lo oficialmente um “desastre natural”.

Só que não, como diria a garotada.

Barragens não são formações provocadas pela ação de placas tectônicas ao longo de eras geológicas e seu rompimento, neste caso, não se deu por algum terremoto.

A responsabilidade da empresa é objetiva. Trata-se de entendimento pacificado pelo STF:

“ROMPIMENTO DE BARRAGEM. INUNDAÇÃO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. DANOS MORAIS E MATERIAIS COMPROVADOS. INDENIZAÇÃO DEVIDA. Comprovado o ilícito, o dano e o nexo causal entre um e outro, decorrentes de rompimento de barragem e inundação e destruição de casas e pertences, aliados à responsabilidade objetiva da Mineradora, impõe-se a procedência do pedido indenizatório por danos morais e materiais.” (STF – ARE: 671674 MG , Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, J. em 31/05/2012, Publ. em 05/06/2012).

Co-responsabilidade do Poder Público
Mas a operadora não é a única responsável. Sua licença estava vencida há dois anos. E, ao que consta, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais, confortavelmente amparada pela Deliberação Normativa 193/2014, do Conselho de Política Ambiental, preferiu sentar-se sobre o processo de revalidação da Licença de Operação, feito em 2013, já que seu art. 1º estabelece que, enquanto a Unidade Regional Colegiada do Copam não decidir, o prazo fica automaticamente prorrogado.Uma comodidade administrativa que contribuiu decisivamente para a morte de diversos moradores e, possivelmente, de toda a fauna do Rio Doce.

O decreto da Sra. Presidenta Dilma, porém, não irá melhorar a situação jurídica da Samarco, do Estado de Minas Gerais ou da União (DNPM, IBAMA).

Em seu artigo “Apenas uma fotografia”, a professora de Direito Ambiental Márcia Brandão Carneiro Leão (Mackenzie – Campinas/SP) pondera:

“O Governo Federal emitiu uma fria e distante nota na qual lamenta o acidente e trata de liberar o FGTS da população afetada para que ela trate de ‘se socorrer’ com suas próprias reservas para o futuro. Generosidade? Não, apenas transferiram à população o ônus de pagar, com seus próprios recursos, os prejuízos causados pela Samarco. O que acontecerá a essas pessoas quando se aposentarem e não tiverem mais o Fundo de Garantia é algo que sequer foi pensado”.

A estas pertinentes observações caberia acrescentar: a não ser que seja totalmente subvertido o significado da palavra “natural”, o decreto é ilegal, pois colide diretamente com a lei que pretendeu regulamentar.

A liberação do FGTS poderia, sim, ocorrer, desde que o Congresso Nacional aprovasse a inserção de um novo inciso ao art. 20 da Lei n. 8.036/90. Eu sugeriria a seguinte redação:
“Art. 20. A conta vinculada do trabalhador no FGTS poderá ser movimentada nas seguintes situações:

XIX –quando o trabalhador perder o seu patrimônio, sua dignidade, seus familiares, sua comunidade e sua história em razão da irresponsabilidade organizada do poder econômico e dos governos na área ambiental”.

*Guilherme José Purvin de Figueiredo é Doutor e Mestre em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da USP; Professor convidado de Direito Ambiental da Escola Paulista de Magistratura, da Escola Superior de Advocacia Pública da PGE-SP e do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da PUC-RJ; Diretor da APRODAB – Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil e do IBAP – Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e Procurador do Estado de São Paulo.