Vanderlan da Silva Bolzani, diretora da Auin-Unesp e vice-presidente da SBPC, escreve para o Jornal da Ciência

Nós, educadores e pesquisadores, temos dedicado pouca atenção a esse debate cujas implicações ultrapassam a área acadêmica e ocupam cada dia mais espaço nas políticas de desenvolvimento do País. A discussão sobre pesquisa básica e pesquisa aplicada em geral coloca as duas como alternativas, de forma excludente. A opção pela segunda tem quase sempre como justificativa a necessidade de uma decisão política diante da escassez de recursos e ganha ressonância particular em tempos de crise econômica.

Com frequência a avaliação de ocasião enxerga na pesquisa “aplicada” resultados de curto prazo para a sociedade, representando assim o melhor uso do dinheiro público ali investido. Enquanto a pesquisa “básica”, aquela movida pela curiosidade inerente ao pesquisador e pela busca do conhecimento em todas as áreas, seria um receptor de recursos sem prazos de retorno ou garantia de resultados.

Para os não familiarizados com o trabalho científico, optar pela pesquisa “aplicada” parece ser uma escolha óbvia, ditada pelo bom senso. Portanto, neste momento, é importante mostrar que esse bom senso é ilusório e destacar como as linhas que separam ciência e tecnologia estiveram sempre interligadas e têm evoluído em permanente movimento e ressonância.

A questão está presente em vários países e tem gerado nas últimas décadas um grande número de artigos, fora e dentro da academia. Um desses textos considero referência pela clareza e profundidade da análise. “Reinventando a Química”, de Georges M. Whitesides, da Universidade de Harvard, publicado em 2014 (edição especial no conceituado periódico Angewandte Chemie International Edition nos 100 anos da BASF), recupera a história recente da química como ciência central nos anos posteriores à II Guerra Mundial. Um período de grande expansão da ciência e tecnologia nos Estados Unidos, que se estendeu à Europa e Japão.

Ele observa que nesse período pós-guerra desenvolveram-se simultaneamente a pesquisa acadêmica em química, dedicada a analisar e entender a sua complexidade, e a química industrial, que produz bens utilizados pela sociedade. Às vezes as duas são descritas como separadas, e mesmo antagônicas. Mas o intercâmbio entre elas, observa, promoveu benefícios extraordinários para ambas. Com frequência, a descoberta de novos fenômenos pela indústria ofereceu pontos de partida para a atividade acadêmica. Enquanto a universidade desenvolveu novas compreensões teóricas e mecanísticas que se transformaram em processos mais aprimorados e produtos industriais de melhor qualidade ou mais acessíveis à população.

Essa conjugação virtuosa teve, entre outros pontos de suporte, o documento elaborado ainda em 1944, a pedido do governo Roosevelt, pelo responsável pelo escritório federal de Pesquisa Científica e Desenvolvimento, Vannevar Bush, “Science, The Endless Frontier”. O argumento de Bush, nota Whitesides, era que a tecnologia gerada por essa pesquisa acadêmica, para a qual ele defendia recursos do governo, apoiava três objetivos importantes para a sociedade: segurança nacional, saúde e empregos.

A contradição entre o objetivo utilitário do “Science, The Endless Frontier”, isto é, a reivindicação de recursos para a pesquisa não dirigida como forma de gerar benefícios para o país tem sido desde então, constata Whitesides, uma fonte de conflito no debate sobre políticas científicas.

Whitesides mostra dois exemplos clássicos a que os contendores costumam recorrer. Os defensores da pesquisa “não dirigida” apontam para a mecânica quântica, uma das mais importantes descobertas do século passado, conquista que nenhuma pesquisa em busca de resultados poderia aperfeiçoar e que promoveu o desenvolvimento tecnológico do fascinante mundo da eletrônica de última geração. Na outra ponta, a internet, uma das mais impactantes ferramentas criadas pelo homem, que teve seu impulso a partir da necessidade imediata de um sistema redundante de comunicação para mísseis balísticos.

A resposta do mundo biomédico à emergência da aids e o notável avanço no tratamento de doenças virais são apontadas como resultado da base de pesquisa “não dirigida” em virologia. Mas é difícil, mesmo em retrospecto, separar as contribuições de uma e de outra, nota Whitesides em seu inspirador e instigante artigo. Lembra ainda que o grande avanço da química foi decorrência de muito conhecimento novo gerado por uma complexa conjunção de fatores, e pela interação de ações de governo, universidade e indústria.

O Brasil, nos anos recentes, tem conquistado resultados importantes em aplicações do conhecimento científico em áreas como bioenergia nanotecnologia, doenças virais, biotecnologia, entre outros. A grande maioria dos pesquisadores responsáveis por esses avanços tem como lastro de sua formação as pesquisas acadêmicas que, às vezes, depois de décadas, transformam-se em colaborações para atender necessidades industriais ou do sistema de saúde,que a cada dia apresenta novos desafios. Quebrar esse ciclo, reduzindo recursos, tendo como justificativa os benefícios imediatos da “pesquisa aplicada” é ignorar um dos mais valiosos patrimônios que acumulamos como País, a ciência fundamental de excelência consolidada hoje em várias áreas estratégicas para o nosso desenvolvimento econômico e social sustentável.