Em meio a cortes de verba que reduziram em 20% o orçamento da instituição para 2016, o Instituto Butantan iniciou uma missão de “resgaste”: ser o centro paulista de combate à epidemia do zika vírus, relacionado à explosão de casos de recém-nascidos com microcefalia no Brasil.
Segundo dados divulgados esta semana pelo Ministério da Saúde, já foram registrados mais de 3,8 mil crianças com a malformação, que pode causar retardo mental, problemas cognitivos, motores, neurológicos e respiratórios por toda a vida. Na primeira semana de monitoramento, em novembro de 2015, eram 399 casos.
Por se tratar do maior produtor de imunobiológicos do país, o Butantan pegou para si a missão de desenvolver uma vacina contra o zika, ao lado dos laboratórios Evandro Chagas (CE) e Bio-Manguinhos, da Fiocruz (RJ). A previsão, no entanto, assusta: para um surto de microcefalia que cresceu mais de 10 vezes em três meses, espera-se que a vacina contra o vírus causador esteja pronta para distribuição em cinco anos.
“[Pela emergência] Nós acreditamos que a criação de um soro imunológico seja a melhor saída em menor tempo. Mas isso considerando que haja uma eficácia do método em mulheres grávidas”, afirma Jorge Kalil, diretor do Instituto Butantan que acompanha de perto as pesquisas sobre zika, em entrevista a EXAME.com. “O soro é possível fazer todos os procedimentos, até distribuição, em menos de dois anos.”
“Hoje, [a solução] é combater vetor e dar dinheiro para cientistas trabalharem”, diz.
Em expectativas otimistas, pesquisadores do Butantan falam em distribuir a vacina em três anos, considerando o número de pesquisadores no país trabalhando no problema e o know how adquirido no desenvolvimento da vacina contra o vírus da dengue, “parente” do zika.
Depois de oito anos de pesquisas, o Butantan está na fase final de validação da vacina da dengue. Está previsto para esse ano o teste em 17 mil pessoas em 14 postos em diferentes estados. Comprovada sua eficácia, a vacina já poderá ser distribuída em 2017, reduzindo drasticamente o número de infectados.
Em 2015, o Brasil sofreu um surto de dengue que bateu recorde. Foram 1,6 milhão de casos suspeitos, quase três vezes mais que 2014. Mas, em época de crise, o Butantan luta pela liberação de R$ 300 milhões necessários para o experimento final. Sem dinheiro, fica para 2018.
“Esse é o período do ano mais propício para trabalhar esse teste. Se tivermos um surto tão grande quanto o do ano passado, podemos fazer a prova de eficácia muito rapidamente e circular a vacina já para o ano que vem”, afirma Kalil. “Se eu perder esse momento, vai demorar mais tempo para chegar à fase de distribuição.”
Confira abaixo a entrevista completa do diretor do Instituto Butantan, que conta os bastidores e dificuldades das pesquisas de combate ao principal problema de saúde pública que vive o país.
EXAME.com – Como a pesquisa chegou ao Instituto Butantan? Como foram os primeiros contatos?
Jorge Kalil – Nós temos relações científicas internacionais o tempo todo. Com esse intercâmbio, nós sabemos o que as pessoas estão desenvolvendo. Desde o princípio, quando se ligou um alerta para o surto de zika, muitos amigos fizeram contato com propostas de possíveis abordagens de combate.
O grande problema é que ninguém esperava que um surto de zika estaria associado com este de microcefalia. A zika é descrita na literatura desde 1947, mas passou anos pela África, teve surtos na Micronésia e Polinésia, sem nunca chamar atenção. Do ponto de vista sintomatológico, ela é uma doença mais branda do que a dengue.
Quando se viu que isso aconteceu, as pessoas passaram a se movimentar para tentar resolver. E as alternativas que temos em vista são especialidades daqui há 120 anos. O Butantan é aparelhado para isso. Temos os cientistas e sabemos como resolver.
E quais as primeiras ações a serem tomadas?
O ponto-chave é que, para achar essa relação que causa um problema tão grave, temos que aprender mais sobre o vírus e desenvolver uma vacina eficiente. São coisas que a gente faz concomitantemente. Nós não trabalhamos com o vetor, que é o mosquito Aedes aegypti. Isso é um fator para o governo atacar por outras frentes e é fundamental nesse momento de surto, quando não temos uma medicação produzida.
O Butantan está trabalhando com fatores fundamentais para entender o vírus e tentar freá-lo. Nós não trabalhamos muito sobre como o zika causa a microcefalia.
Portanto, estamos vendo em colaboração com pesquisadores da USP uma linha de vacina. Como o vírus parece ter um efeito direto nos fetos e não temos um remédio de qualidade, a medida mais emergencial é produzir um soro — como já fazemos contra a raiva ou veneno de serpentes — para diminuir a quantidade de vírus nessa mulheres e tentar evitar casos de microcefalia.
Isso nós já estamos trabalhando. Temos que ter vírus em quantidade suficiente, temos que ter um teste para inativar o vírus — isso tudo nós já sabemos fazer — e vamos começar o protocolo de imunização em cavalos, isolar o plasma e imunoglobulinas e testar em modelos de roedores e, se possível, primatas antes de humanos.
Tentaremos também produzir anticorpos in vitro, pois daí daria para fazer diretamente a terapia ou testes diagnósticos.
Pelo que se tem estudado, grávidas que tiveram o zika no passado podem ter filhos com microcefalia?
Provavelmente, não. Mas essa é uma das perguntas fundamentais que temos que descobrir para entender o vírus.
Quando se tem o zika, há um pico de infecção no sangue da mulher, mas será que ele desapareceu ou ficou em alguns lugares que possam reaparecer? Não sabemos se o corpo consegue eliminar rápida ou inteiramente o vírus.
Quais as outras perguntas fundamentais que precisam ser respondidas para entender o vírus e achar uma solução para o problema?
Vamos lá. O índivíduo que tem zika uma vez, nunca mais vai ter? Há uma imunidade específica contra o zika? Quanto tempo o zika persiste no organismo? Já sabemos que no sangue vai rápido, será que é igual para o corpo todo?
Como o zika atravessa a placenta para atacar o feto? É sozinho, ou usa alguma coisa como facilitador? Existe mais vulnerabilidade em mulheres para ter infecções mais graves e transmitir para o feto? É genético? Que marcadores genéticos podem ser?
Como é a resposta protetiva para o zika? Só com anticorpos naturais dá para combater? O vírus causa efeito direto nos neurônios para microcefalia ou causa alguma reação imunológica que causa o problema no local? Por que ele ataca a cabeça?
Veja que todas essas perguntas são básicas, mas seguem como dúvidas que a comunidade científica ainda não conseguimos responder. Isso mostra como estamos em fase inicial de pesquisa.
Tendo em vista a gravidade do surto, a melhor alternativa para combate, então, é o soro?
Nós acreditamos que a criação de um soro imunológico seja a melhor saída em menor tempo. Mas isso considerando que haja uma eficácia do método em mulheres grávidas.
A vacina vai demorar mais tempo, a previsão é de cinco anos. O soro é possível fazer todos os procedimentos, até distribuição, em menos de dois.
As verbas do Butantan vêm majoritariamente do Estado de São Paulo. Houve algum reforço por conta das novas linhas de pesquisa?
Temos também verbas que vêm da Fundação Butantan, da venda de vacinas ou projetos na Fapesp, Finep e BNDES. Mas o ministro da Saúde, Marcelo Castro (PMDB), quando veio aqui, nos prometeu que mandaria recursos extras para esses estudos. Ainda não veio.
Sobretudo por ser uma linha extraordinária, nosso orçamento não prevê nada de verba para pesquisa em zika.
Quanto seria necessário?
Além das pesquisas, preciso de animais para teste. Além disso, precisamos engravidar esses animais para ver o comportamento viral. São coisas caras que ainda não paramos para contabilizar, mas é da ordem de várias dezenas de milhões de reais.
E a equipe? É suficiente?
Atualmente, estamos com 10 pessoas trabalhando fixo no projeto. Mas acreditamos que seria necessário ao menos triplicar essa quantidade.
O senhor menciona que zika não é especialidade do Butantan, mas qual o grau de prioridade que está sendo dado à pesquisa nesse momento?
Temos 2 mil pessoas no Instituo, com muitos projetos andando. Esse teve que ganhar um espaço maior pela urgência, tomando muitos recursos. Mas temos outros que não podem parar, por exemplo a vacina da dengue
Desde quando a vacina da dengue está sendo desenvolvida?
O Instituto já trabalha há oito anos nessa vacina e agora estamos na fase três de ensaio clínico. É a pesquisa de campo, para ver se os vacinados estão de fato protegidos contra a infecção natural pela dengue.
É uma fase muito grande: vamos envolver 17 mil pessoas, em 14 centros espalhados pelo país, de diferentes faixas etárias. Com a diminuição recente de verba que o Instituto teve, estamos perdendo tempo. Conseguimos a aprovação de órgãos reguladores na metade de dezembro, mas não estou com o dinheiro necessário para executar essa fase.
E esse é o período do ano mais propício para trabalhar esse teste. Se tivermos um surto tão grande quanto o do ano passado, podemos fazer a prova de eficácia muito rapidamente e circular a vacina já para o ano que vem. Se eu perder esse momento, vai demorar mais tempo para chegar à fase de distribuição.
O que aconteceu com essa verba?
As dificuldades econômico-financeiras do país estão freando investimentos em todas as áreas. Nós calculamos que esse estudo de fase 3 sairia em torno de R$ 300 milhões. São recursos do estado, do governo federal… Estamos pedindo para todo mundo.
O que trouxe o zika para o Brasil?
Não importa o que trouxe. O Brasil está cheio de turista, pode ter vindo de qualquer lugar. O que é certo é que não há um combate eficaz do vetor, que é o mosquito Aedes aegypti, nem há um diagnóstico preciso. Zika ainda é muito confundido com dengue.
Considerando que a vacina e soro levam tempo, qual a melhor forma de mitigação desse problema agora? Só combater o mosquito?
Hoje, é combater vetor e dar dinheiro para cientistas trabalharem. Mais que isso: deixar o cientista trabalhar, diminuindo um pouco a burocracia. Seja para troca de materiais com o exterior, para importação de reagentes, aumentar o contingente para trabalhar…
O Brasil é muito capaz, mas agora é que mais precisamos de investimento. O problema é que o Brasil não acredita muito.
Qual o processo burocrático que tanto atrapalha?
Nós temos todo um ambiente burocrata. Enquanto dois cientistas trabalham, tem 10 fiscalizando: pedindo documento, revisando os projeto, como se isso fosse diminuir um pouquinho o desvio de recursos. O desvio de recursos se dá lá em cima.
O cientista brasileiro é inundado de burocracia. Demora seis meses pra importar um reagente! Se eu tenho uma ideia de experimento, nos Estados Unidos o cara faz amanhã. Eu levo seis meses para tentar. É Anvisa, importação, declaração de recurso utilizado… O governo federal poderia facilitar muito nesse sentido e liberando verbas.
No caso da vacina de zika, quanto tempo se perde no desenvolvimento com essas burocracias?
Metade. Poderíamos ter a vacina com 2 anos e meio se processos fossem mais rápidos.
O que se pode fazer para evitar surtos futuros?
É acreditar mais que os problemas são resolvidos com ciência e tecnologia, não com política. O Brasil ainda não entendeu que as questões precisam de conhecimento técnico e eficiência para se resolverem.
Discurso político não resolve nada. Tem é que dar condições de primeira linha para quem quer pesquisar. O país tem que acreditar que vale investir em cientistas dele, em vez de priorizar o estrangeiro. Tem que acreditar que aqui dá para fazer inovação.
Em países desenvolvidos, estudar esse tipo de doença fica a caráter de curiosidade. Mas somos nós que sofremos com o problema. Não dá para esperar uma solução vinda de lá. Hoje, também na ciência, só sabemos fazer commodities. Não sabemos fazer produtos inovadores.