Como reitor, meu dia-a-dia é naturalmente ligado à educação superior, porém, como cidadão, minhas preocupações com todos os níveis de ensino têm a mesma ênfase. Mesmo que pensasse exclusivamente no ensino superior, este não crescerá jamais em qualidade, bem como em quantidade, antes que a educação básica apresente efetivos avanços. O que temos observado, particularmente no ensino médio, é o oposto, variando de estagnação ao longo dos anos à piora gradativa. Seja em qualidade do ensino ministrado, em número de formandos, clareza de propósitos e, especialmente, em perspectivas futuras.

 

O indicador de qualidade mais adotado, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, IDEB, evidencia que entre os níveis da educação básica, o ensino médio é aquele que está em pior situação (elo mais frágil, portanto), tendo se mantido estagnado ou mesmo tendo piorado, estando hoje este indicador em torno de 3,7 frente a uma distante e modesta meta de 4,3.

 

Como educador, entendo que nesta área o processo é tão relevante quanto os propósitos finalísticos. Em educação e nos temas correlatos, o exercício do convencimento pelo esclarecimento sempre será uma marca desejável e a mais efetiva. Assim não tenho como deixar de registrar, preliminarmente, que o instituto da Medida Provisória (MP) pode sim soar estranho e indevido a muitos. Na legislação brasileira, o recurso de MP é previsto para acolher situações de emergência que não possam se submeter aos prazos normais. Por um lado, temos parcialmente atendido um dos requisitos: a calamidade amplamente registrada neste nível de ensino não pode esperar muito mais. Por outro, lembremos que já há um Projeto de Lei (PL) similar tramitando, ainda que sem sucesso, desde 2013. Todos aguardam que a edição desta MP seja um instrumento a mais que contribua para um possível acordo entre Executivo e Legislativo que finde por optar por algum mecanismo que permita ao Congresso apreciar adequadamente a matéria, ainda que em regime de urgência urgentíssima, tal como a gravidade do tema sugere.

 

A primeira e talvez mais relevante contribuição é a necessidade de entendermos que a Reforma para ser bem-sucedida demanda ser fruto da contribuição de muitos atores, sendo que em cada etapa há uma prioridade. Quanto ao Congresso Nacional, entendo ser o mais importante explorar a máxima flexibilidade, desfazendo nós, desobstruindo regras cujas rigidez e burocracias associadas findam por emperrar propostas mais criativas e contemporâneas sobre múltiplas abordagens educacionais inovadoras.

 

A título de exemplo de dificuldades atualmente existentes, a realidade de treze disciplinas obrigatórias em si contribui para limitar ou mesmo impedir que melhores e mais adequadas estratégias no processo ensino-aprendizagem sejam debatidas ou implementadas. Os argumentos para manter como obrigatório o ensino de artes e de educação física são plausíveis e respeitáveis. Tanto quanto para filosofia, sociologia, história e geografia.

 

Da mesma forma, como físico, teria pouca dificuldade em apontar os prejuízos e deficiências de um formando do ensino médio que não tivesse tido acesso a um mínimo de física e uma introdução ao raciocínio embasado no método científico. A mesma lógica vale para biologia e química. Ou seja, seguindo esta linha, mesmo parecendo sensato, ao final, chegamos a um indesejável e previsível engessamento. Ainda que embasado em argumentos parcialmente corretos e bem-intencionados, o resultado final se aproxima de onde estamos, paralisados, e distantes de estarmos cumprindo o que está previsto. Claro, há outras causas e motivos igualmente relevantes, mas, especificamente, se refletíssemos sobre esses conteúdos com menos amarras seria bem melhor. Se pudermos tratar mais de conteúdos e menos de disciplinas mais adequado ainda. Resumindo, o relevante é garantir que os conteúdos, apresentados de forma isolada ou transversal, sejam ministrados e compreendidos de forma satisfatória, garantindo uma aprendizagem melhor do que temos atualmente.

 

Vivemos um período de informação plenamente acessível, instantaneamente distribuída e, praticamente, gratuita. Assim, neste cenário, tão ou mais importante do que o que é aprendido (informação ou ensino), é que o educando tenha amadurecido sua capacidade de aprender (aprender a aprender), dominando progressivamente a compreensão acerca dos mecanismos segundo os quais ele aprende, em compatibilidade com o mundo educacional de aprendizagem permanente e ao longo de toda a vida.

 

Corroborando esta linha, Einstein afirmou no século passado “Educação não se resume à aprendizagem de fatos, mas inclui, especialmente, a capacitação da mente para pensar”. Confúcio, por sua vez, de forma precursora, há 2.500 anos, teria dito: “Aprender sem pensar é perda de tempo”. Em suma, mais do que uma simples discussão sobre disciplinas que deixam ou não de ser obrigatórias, há que se tentar explorar quais são os espaços que levam o professor a desenvolver, em cada educando, o universo da curiosidade e reflexão que existe em cada educando. Mais relevante do que foi aprendido é o progressivo amadurecimento da consciência acerca de como se aprende. A obsessão pelo conteúdo fragmentado inibe, quando não impede totalmente, explorar caminhos que estimulem a criação de ambientes que articulem os vários conteúdos, tornando a aprendizagem mais interessante e animadora para os alunos e os professores envolvidos.

 

Com as tecnologias digitais, temos a oportunidade de explorar um novo cenário educacional onde todos aprendem (não sabíamos disso, pensávamos que somente alguns aprendiam), onde todos aprendem o tempo todo (antigamente a aprendizagem estava circunscrita ao ambiente escolar, delimitando espaços e tempos que hoje extrapolam em muito os muros e os tempos da escola) e, por fim, o mais relevante, descobrimos que cada educando aprende de maneira única e personalizada (uma espécie de DNA educacional que caracteriza cada um de nós). Apoiados pela analítica da aprendizagem, os educadores poderão conhecer muito mais sobre seus educandos, bem como estes sobre si mesmos, propiciando desenvolver trilhas educacionais personalizadas que atendam às características, circunstâncias e peculiaridades de cada aluno individualmente. Nada disso é simples. Ao contrário, tudo é bastante complexo, mas absolutamente factível e já em curso (ainda que em escala reduzida e, infelizmente, ainda bastante seletivo).

 

Trata-se de priorizarmos estas abordagens e buscarmos mecanismos que permitam que elas se apliquem na devida escala, conjugando qualidade e quantidade de forma inédita neste país. Há que se romper o paradigma de que, apesar de sabermos fazer coisas boas e para muitos, não sabemos fazer essas duas coisas ao mesmo tempo. Quando boas, em geral, para poucos; quando para muitos, inexoravelmente com baixa qualidade. Temos sim a oportunidade, a partir da educação, de provermos qualidade para muitos, garantindo um mundo de oportunidades mais iguais para todos.

 

De acordo com a proposta em discussão, durante todo o primeiro ano e metade do segundo, os alunos serão expostos aos conteúdos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a qual, por sua vez, ainda não foi definida. No ano e meio seguinte, eles seguirão as trilhas formativas, com ênfase nas áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica profissional. Neste caso, cada sistema de ensino, em consonância com o que ficar orientado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), em conjunto com cada escola, deverá configurar os múltiplos percursos educacionais oferecidos aos alunos. O adequado uso de novas tecnologias acoplado à adoção de metodologias inovadoras pode sim cumprir este papel. Programas como o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), reformulados à luz das possibilidades da era digital, bem como banco de objetos de aprendizagem e outros recursos educacionais abertos, podem contribuir muito na articulação de diferentes campos do saber, sem prejuízo das características e especificidades de cada um deles. O desafio é grande, mas nada há de mais relevante a ser feito na educação contemporânea.

 

Há uma grande e compreensível reação a pensarmos menos em disciplinas e estimularmos que as escolas se estruturem também a partir das ênfases de conteúdos gerais e transversais. Aparentemente, outros países foram bastante bem ao realizarem mudanças e outros estão acelerados migrando nesta direção. Copiar as experiências dos demais de forma acrítica é tão pouco inteligente como desprezar as iniciativas que evidenciam algum nível de sucesso. Igualmente, não devemos menosprezar aquelas possíveis soluções educacionais que estão em curso em outros países e que demandam acompanhamento muito próximo.

 

A título de ilustração, no começo de 2006, fui pessoalmente convidado pela então ministra da Educação do Reino Unido, Ruth Kelly (Governo Tony Blair, onde Kelly, com 36 anos, foi a mais jovem membro de um Gabinete de Governo), para acompanhar algumas mudanças específicas na área de ensino de ciências neste nível educacional na Inglaterra e País de Gales (Escócia e Irlanda do Norte não adotaram a mesma estratégia). A crise educacional naquele momento decorria dos maus resultados britânicos no Pisa (Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes), um exame internacional aplicado aos alunos de 15 anos em países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e alguns convidados (incluindo o Brasil). No primeiro Pisa, em 2000, Inglaterra havia se saído razoavelmente bem: 4° lugar em ciências, 7° em idioma e 8° em matemática. Posteriormente, Inglaterra caiu muito, resultando aparecer em 2009 nas posições 16°, 25° e 27°, respectivamente. Crise instalada, uma das soluções apontadas foi considerar que mais relevante do que “obrigar” os alunos a fazerem física, química e biologia seria promover uma mudança que permitisse que cada um pudesse escolher se quer fazer somente uma delas, duas ou as três. No início, houve uma preponderância na escolha de uma disciplina, biologia. A melhor iniciativa foi incluir nos conteúdos de biologia os elementos mais fundamentais e imprescindíveis de física e química. Por exemplo, o estudo da dinâmica da seiva no interior da planta tornou-se motivação para estudo de mecânica, a folha da planta um laboratório de eventos químicos moleculares etc.

 

Ao final, mais do que medir se os alunos sabiam mais ou menos, parece ser inegável que os concluintes, em média, gostavam muito mais de ciências do que antes. Fato é que no último PISA, o Reino Unido recuperou muitas posições, ficando agora em 6° lugar (lembrando que os 4 primeiros lugares são países asiáticos, a saber, Coréia do Sul, Japão, Singapura e Hong Kong), 2° lugar na Europa (atrás somente da Finlândia, sendo que antes ele havia sido superado por vários países como Noruega, Islândia e Polônia). Claramente não foi somente esta medida singular que resultou no sucesso, nem sequer o caminho desta medida foi linear, mas sim repleto de idas e vindas, o importante é que um conjunto de medidas adequadas e relevantes efetivamente fez, ao final, a diferença. Esse exemplo nos motiva a crer que políticas públicas consistentes promovem e geram resultados efetivos.

 

Em particular sobre a ênfase em formação técnica profissional, Anísio Teixeira apontava, desde a década de 1950, que a educação secundária já era excessivamente propedêutica. Ou seja, priorizava a visão de etapa preparatória a estudos mais aprofundados de nível superior, subestimando o outro papel, de caráter mais terminal, de preparação dos jovens para o mundo do trabalho. Este quadro foi, mais recentemente, agravado pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), fortalecido em seu papel de ingresso no ensino superior, transformando-se na principal referência do que deva ser ensinado neste nível.

 

Destaco, portanto, que um dos aspectos positivos desta proposta é a inclusão explícita da educação profissional dentre os itinerários formativos. Nos países mais competitivos e bem-sucedidos, a maioria dos jovens que fazem o ensino médio regular juntamente com educação profissional. No Brasil, infelizmente, esse número é em torno de somente 11%. Como está estruturado hoje, a concepção subjacente é de que que o ensino médio prioritariamente prepara ao ensino superior, porém, menos de um quinto dos jovens vão para as faculdades e menos de 12% da população adulta têm diploma universitário. Há que se propor itinerários formativos compatíveis e animadores a todos e haveremos de achar nossos próprios caminhos no Brasil.

 

O processo ensino-aprendizagem no ensino médio depende de muitos fatores, mas cabe especial destaque as condições de trabalho dos professores que atuam neste nível educacional. Em geral, eles são mal remunerados (seja comparando com outras profissões ou comparando com docentes do ensino superior), tornando a profissão pouco atraente. Além disso, os cursos de formação, quando ofertados, geralmente, não conseguem capacitá-los adequadamente à adoção de metodologias inovadoras e contemporâneas, especialmente quanto ao uso de novas tecnologias no ambiente educacional.

 

O Congresso Nacional, naquilo que lhe compete, está corretamente fazendo sua parte e as Audiências Públicas são partes positivas deste processo. Mas, certamente não há milagres que possam ser feitos aqui, muito menos isoladamente e apartado dos que estão mais diretamente envolvidos no processo educacional. Os demais caminhos são igualmente desafiadores e importantes. Cabe ao Congresso Nacional, creio eu, a título de sugestão, neste momento, principalmente, retirar obstáculos, não criar novos vínculos (carga horária mínima etc.) e definir os elementos macros de um processo cuja qualidade será definida especialmente pelas etapas posteriores. Os melhores trajetos entendo que serão aqueles que apostarem na ampla participação, no esclarecimento e no convencimento, particularmente da comunidade escolar, envolvendo alunos e docentes. Se soubermos temperar esses bons propósitos com a urgência que o tema demanda estaremos contribuindo muito, dado que qualquer demora no tratamento do tema terá como pena agravarmos ainda mais nosso atraso.

 

Registro, por fim, que estamos vivenciando crises acopladas que demandam soluções harmônicas e interdependentes. A tarefa de olhar de forma fragmentada sempre parecerá e será capenga. Por exemplo, a crise econômica decorre, principalmente, da perda gradativa de competitividade. Nossos produtos e serviços têm qualidade limitada por depender de trabalhadores e empresários, em geral, com insuficiente escolaridade e de reduzido estímulo à inovação e capacidade empreendedora.

 

Sem um ensino médio vigoroso, especialmente capaz de preparar profissionais técnicos competentes não haveremos de alterar este quadro. Má qualidade do ensino médio tem também como consequência um parque universitário extremamente limitado na sua capacidade de gerar ciência e inovação que sejam mundialmente competitivas. Seremos reduzidos, cada vez mais, a meros consumidores de tecnologias de ponta desenhadas no exterior e pagas, via commodities com preços aviltantes, num ambiente de altas taxas de desemprego. Em suma, educação, definitivamente, é a mais estratégica área que viabiliza, ou impede, o país de almejar um possível desenvolvimento econômico, social e ambiental sustentável.